Didáctic@ da Língua em Rede - Ensino Básico 1º Ciclo

quinta-feira, dezembro 21, 2006

A Tia Miséria

A Tia Miséria

“Havia no princípio do mundo uma velhinha muito pobre e muito infeliz: era conhecida pela Tia Miséria.
Só possuía uma casinha arruinada e uma pereira defronte da porta. Tudo sofria com paciência e resignação, mas só uma coisa não desculpava, nem perdoava: que os garotos subissem à pereira e lhe comessem as peras. Era capaz de dá-las todas sem provar uma, mas indignava-se contra os que lhas roubavam.
Numa noite bateu-lhe à porta um pobrezinho; correu a abri-la e deu ao pobrezinho a migalha de pão que reservava para si. No dia seguinte despediu-se o pobre e disse-lhe que pedisse o que quisesse.
- Só peço que as pessoas que subirem à minha pereira não possam descer sem o meu consentimento – respondeu a velhinha.
No outro dia, quando saiu à rua, encontrou três garotos em cima da pereira.
- Oh, Tia Miséria, perdoe-nos pelo amor de Deus! Tire-nos daqui, não podemos descer.
Ah! Pois vocês diziam que não eram os ladrões das minhas peras! Por esta vez, vá; se lá voltarem hão-de ficar aí muitos anos.
E os garotos desceram e não mais voltaram à pereira.
Em um dia de manhã, entrou-lhe em casa uma mulher de horrendo aspecto, vestida de negro e armada de foice, com asas negras nos ombros e nos pés.
- O que me quer? – perguntou a Miséria a tremer.
- Sou a Morte: venho buscar-te.
- Já? Pois nem ao menos me dá um ano de espera?
- Não pode ser – respondeu a Morte.
- Faça-me ao menos um favor: suba à minha pereira e colha-me a última pêra que me resta. Quero comê-la, visto que é a última.
A Morte subiu à pereira, colheu a pêra, mas não pôde descer. Pôs-se a chamar a velhinha. Ela respondeu:
- Tem paciência, aí ficarás para todos os séculos. És má, tens feito muitas desgraças, roubado muitos pais aos seus filhos pequeninos...
E a Morte ficou em cima da pereira.
Passados dias tinha a velhinha em frente da sua porta um exército, composto de padres que se queixavam de que não havia enterros, de escrivães que se lastimavam de não ter inventários, de delegados que se doíam de não fazer promoções orfanológicas, de juízes que se queixavam não receber emolumentos das reuniões dos concelhos de família, das presidências nos actos de licitações e das sentenças em demarcações, enfim de todos aqueles indivíduos que vivem da morte do próximo. Todos pediram à velhinha que autorizasse a Morte a descer da pereira mas a velhinha respondia:
- Não quero, não quero e não quero.
Falou então a Morte do alto da pereira e fez com a velhinha um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo. A velhinha consentiu e a Morte desceu. Por isso enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a terra”.

in Tesouros da Literatura Popular Portuguesa

Nesta altura de Natal, que tanto se fala dos mais carenciados e da miséria em que alguns vivem, lembrei-me de partilhar convosco o conto da Tia Miséria.

Será que José Saramago quando escreveu As Intermitências da Morte não se inspirou neste conto?

Beijinhos
Dalila Gomes